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Análise Quinzenal
De Kyoto a Belém, via Amazônia: A Cooperação Brasil-Japão para o Desenvolvimento Sustentável e o Horizonte da COP 30
por Kaio Lucas S. Mesquita “No começo, pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras. Depois, pensei que estava lutando para salvar a Floresta Amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade.” Chico Mendes. Em março de 2025, Brasil e Japão firmaram um memorando para fortalecer cooperação sobre desenvolvimento sustentável entre os dois Estados. Assinado pela ministra brasileira do Meio Ambiente, Marina Silva, e o ministro japonês do Meio Ambiente, Keiichiro, durante visita de Estado ao Japão, essa ação busca fortalecer a cooperação técnica e financeira entre as duas nações. Alinhado ao “Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável” (2024) e ao “Plano de Ação (2025-2030)” da Parceria Estratégica e Global Brasil-Japão, o memorando constitui um marco diplomático cujo alcance pode transcender a esfera bilateral (Brasil, 2024a; Brasil, 2025b; Brasil, 2025c). A reafirmação dessa parceria emerge em meio à intensificação da crise climática, onde riscos ambientais dominam o panorama de curto, médio e longo prazo (WEF, 2025). A 30ª Conferência das Partes (COP 30), a ser realizada em Belém do Pará, em 2025, é amplamente difundida pelo Brasil como uma “COP da implementação” (WWF-Brasil, 2025) e uma oportunidade vital para robustecer o multilateralismo ambiental (IISD, 2025; Brasil 2025d; WWF-Brasil, 2025). Nesse sentido, a cooperação bilateral entre Brasil e Japão — atores com histórico de protagonismo na arena ambiental global — demanda uma análise aprofundada de seu prospecto de influência sobre esse cenário crítico. Dessa forma, o objetivo desta análise é examinar como o recente acordo espelha e catalisa os papéis históricos de Brasil e Japão como arquitetos da governança ambiental global. Com isso, explicitar de que forma essa iniciativa bilateral pode moldar a agenda e os resultados da COP 30, propondo um novo ímpeto ao multilateralismo em um momento decisivo para a ação climática. Argumenta-se que a parceria Brasil-Japão, ao reafirmar um eixo de cooperação entre um gigante do Sul Global e uma potência tecnológica do Norte Global, pode não apenas fortalecer as políticas domésticas de sustentabilidade, mas também injetar um novo dinamismo no multilateralismo ambiental. E, com isso, oferecer um modelo de cooperação pragmática capaz de influenciar positivamente as negociações e os resultados da COP 30. Arquitetos da Governança Ambiental Global: Dualidades e Legados As trajetórias do Brasil e do Japão na governança ambiental são marcadas por contribuições ambíguas, nas quais avanços institucionais coexistem com contradições estruturais. O Brasil desempenhou um papel central como anfitrião e articulador de conferências que foram marcos das negociações multilaterais em agenda ambiental, como a Eco-92 (1992) e a Rio+20 (2012), cruciais para consolidar o conceito de desenvolvimento sustentável na agenda internacional e para o lançamento de convenções ambientais chave (Brasil, 2011; Thuswohl, 2012). Nesse contexto, o Brasil projetou-se como uma “potência ambiental emergente” (Barros-Platiau et al., 2019), valendo-se de sua megabiodiversidade, da vastidão da Floresta Amazônica e de seus abundantes recursos hídricos (Hochstetler, 2021). Contudo, sua atuação tem sido objeto de análises críticas que apontam para um “mito climático” (Viola et al., 2019), que destaca a dissonância, em certos períodos, entre o discurso de liderança e as políticas domésticas efetivamente implementadas, particularmente no que tange ao controle do desmatamento e à expansão de atividades econômicas de alto impacto (ibid.). Essa inconsistência entre a autoimagem de vanguarda e a realidade de suas emissões e políticas internas afeta sua credibilidade e coloca em questionamento sua capacidade de liderança. Apesar disso, a relevância do Brasil na Governança Ambiental Global permanece inconteste, dada a sua proeminente relevância ecológica global. O Japão, por sua vez, adotou uma postura pragmática reiterada. Como anfitrião do Protocolo de Kyoto, adotado em 1997, o país desempenhou um papel crucial nas negociações, buscando um acordo que ponderasse as metas de redução de emissões com os interesses de sua robusta base industrial (Kameyama, 2004). As dinâmicas internas entre seus ministérios ilustram a complexidade da formulação de sua política externa ambiental (Ibid.). Sua diplomacia ambiental destaca-se por propostas como a Iniciativa Satoyama (里山), uma abordagem que integra saberes tradicionais à conservação da biodiversidade (Embaixada do Japão, 2008), e demonstrou liderança na criação do Protocolo de Nagoya sobre Acesso e Repartição de Benefícios, adotado em 2010 e cuja implementação foi apoiada financeiramente pelo Fundo de Biodiversidade do Japão (CBD, 2017). Todavia, seu desempenho ambiental recente, embora apresente progressos, enfrenta desafios significativos na transição energética, dada sua dependência de combustíveis fósseis e a necessidade de maior ambição em suas metas de redução dos Gases de Efeito Estufa (GEE) (OECD, 2025). Essa dualidade histórica revela lideranças não monolíticas. Ambos demonstraram capacidade de influenciar a Governança Ambiental Global — o Brasil propondo agendas e conceitos, o Japão facilitando acordos complexos. Contudo, essa liderança foi frequentemente condicionada por fatores domésticos e pela percepção de seus interesses em um sistema internacional competitivo. O pragmatismo japonês em Kyoto, por exemplo, viabilizou um acordo, mas ao custo de concessões importantes para acomodar sua indústria e a esperada, porém frustrada, participação dos EUA (Kameyama, 2004). Similarmente, o Brasil enfrenta críticas persistentes pela defasagem entre seu discurso internacional e a efetividade de suas políticas domésticas (Viola et al., 2019). Nesse contexto, o novo acordo bilateral não deve ser visto como mera continuação de lideranças passadas, mas como uma iniciativa que pode tanto reafirmar seus potenciais construtivos quanto superar inconsistências anteriores. A efetividade dessa parceria dependerá crucialmente da capacidade de ambos os Estados de alinhar seus interesses em prol de objetivos de sustentabilidade robustos, especialmente diante da urgência imposta pela agenda da COP 30. A Parceria Brasil-Japão para o Desenvolvimento Sustentável: Estruturas e Oportunidades Estratégicas Em 2025, Japão e Brasil comemoram 130 anos de amizade. O acordo de cooperação firmado em maio de 2024 e reiterado em 2025 constitui um avanço institucional significativo no aprofundamento das relações bilaterais, com a capacidade de gerar impactos concretos nas políticas de sustentabilidade domésticas e dinamizar a cooperação multilateral. Suas linhas prioritárias — transição energética, bioeconomia e adaptação climática — alinham-se a uma parceria estratégica de mais cinco décadas de cooperação técnica, exemplificada por projetos como o Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados (PRODECER) (Brasil, 2025b), e por parcerias ativas entre instituições como o Serviço Geológico do Brasil (SGB) e a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) em gestão de riscos e desastres (Brasil, 2024a; Brasil, 2024b; Brasil, 2025b). Crucialmente, o acordo não emerge de forma isolada, mas como um enquadramento no Plano de Ação (2025-2030) da Parceria Estratégica e Global Brasil-Japão (Brasil, 2025c). Isso confere à iniciativa um quadro institucional robusto e uma perspectiva de longo prazo, alinhando-se a pilares estratégicos como Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) (Brasil, 2025b). Na esfera doméstica, o acordo pode catalisar avanços importantes. Para o Brasil, a cooperação pode fornecer recursos financeiros, tecnológicos e expertise para a implementação do Plano Clima (Brasil, 2024c) e da Agenda Brasil+Sustentável (Brasil, 2022), beneficiando diretamente as metas de descarbonização e combate ao desmatamento. Para o Japão, a parceria oferece oportunidades para avançar em sua estratégia de Transformação Verde (GX) (OECD, 2025), diversificar suas fontes de energia limpa por meio do hidrogênio de baixo carbono e biomassa, e acessar créditos de carbono brasileiros. A cooperação pode, ainda, fomentar redes entre universidades, centros de pesquisa, ONGs e empresas de ambos os países, acelerando a inovação e a capacitação de recursos humanos. A natureza dessa parceria bilateral, focada em interesses mútuos e capacidades complementares, constitui uma manifestação de Environmental Statecraft marcadamente pragmática. De um lado, o Brasil dispõe de vastos recursos naturais e de um imenso potencial para energias renováveis, mas necessita de investimento e tecnologia de ponta para sua plena realização (Hochstetler, 2021). De outro, o Japão, uma potência tecnológica detentora de capital, busca diversificar suas fontes energéticas para cumprir metas climáticas e garantir sua segurança (OECD, 2025). O acordo atende a essas necessidades convergentes. A lógica de benefícios mútuos transcende a cooperação puramente altruísta, alinhando-se à noção de statecraft, na qual os Estados utilizam a pauta ambiental para alcançar objetivos nacionais mais amplos (Barrett, 2003). Contudo, esse pragmatismo exige salvaguardas, como a necessidade de um monitoramento rigoroso para assegurar que os benefícios sejam distribuídos equitativamente, que a cooperação não reforce dinâmicas de dependência assimétrica e que não haja externalização de custos socioambientais. Implicações para o Multilateralismo e a Governança Ambiental Global: entre fragmentação e inovação Além de seus impactos bilaterais, a parceria Brasil-Japão detém o potencial de repercutir significativamente no sistema multilateral. Em um cenário adverso, marcado pela fragmentação geopolítica e por déficits de implementação (Allan, 2025; Cousin, 2025), o acordo materializa uma cooperação construtiva entre o Sul e o Norte Global, demonstrando a viabilidade do avanço bilateral em temas cruciais da agenda global. Conforme a teoria do Environmental Statecraft (Barrett, 2003), acordos internacionais são mais eficazes quando reestruturam os incentivos estatais em favor da cooperação. A parceria Brasil-Japão, ao focar em complementaridades, pode criar tais incentivos, estimulando ambos a elevarem sua ambição climática. Com isso, pode contribuir para a eficácia comportamental dos Acordos Multilaterais Ambientais (AMAs), promovendo a adoção de novas tecnologias e práticas sustentáveis (Sand, 2016). Embora não atuem como clássicos Norm Entrepreneurs[1] (Finnemore; Sikkink, 1998 apud Chase, 2019), Brasil e Japão podem se posicionar como difusores de boas práticas, facilitando o aprendizado mútuo e a disseminação de inovações (Sand, 2016) em áreas como tecnologias de baixo carbono e repartição de benefícios da biodiversidade (Embaixada do Japão, 2008; CBD, 2017). No plano internacional, a aliança pode fortalecer a posição de ambos em fóruns como o G20 e nas Conferências das Partes da United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC), além de inspirar a formação de “clubes de cooperação” minilaterais [2]. Notadamente, a parceria pode servir como uma plataforma para demonstrar a viabilidade de soluções para um dos principais entraves das negociações climáticas: a operacionalização dos meios de implementação — financiamento e transferência de tecnologia — (Power Shift Africa, 2025; E3G, 2025). O acordo envolve precisamente esses elementos, com o Japão aportando tecnologia e capital, e o Brasil, recursos naturais e escala de implementação. Caso projetos concretos, inovadores e mutuamente benéficos emerjam dessa cooperação — por exemplo, no desenvolvimento de cadeias de valor para o hidrogênio verde ou na aplicação de tecnologias para a bioeconomia amazônica — poderiam servir como valiosos estudos de caso para replicação no Sistema Internacional. Tais modelos poderiam informar e enriquecer as discussões na COP 30 sobre como estruturar mecanismos de financiamento e cooperação tecnológica que sejam eficazes e equitativos. O sucesso dessa iniciativa bilateral poderia, assim, reduzir o ceticismo quanto à viabilidade da cooperação Norte-Sul e oferecer exemplos concretos para destravar negociações multilaterais, transformando o acordo em um importante ativo diplomático para a presidência brasileira da COP 30. Contudo, o desafio intrínseco reside em garantir a transparência, a replicabilidade e a escalabilidade desses modelos, evitando que se tornem arranjos exclusivos com benefícios limitados à díade. Rumo à COP 30: O Acordo Brasil-Japão como Alavanca Diplomática A Conferência das Partes da UNFCCC em Belém (COP 30) desponta como um momento decisivo para a agenda climática global. A presidência brasileira, ciente das expectativas internacionais, delineia um cenário onde iniciativas como o acordo Brasil-Japão adquirem particular relevância. O Brasil manifestou a intenção de catalisar uma inflexão na ação climática, com ênfase na transição da negociação para a implementação (Brasil, 2025d). As prioridades incluem o estímulo a NDCs mais ambiciosas, o avanço no financiamento climático — destacando-se o Roteiro de Baku a Belém — e a integração sinérgica entre as agendas de clima, biodiversidade e ODS (Brasil, 2025d). A visão brasileira para a COP 30 aponta para uma transição energética justa, ordenada e equitativa, afastando-se progressivamente dos combustíveis fósseis (Observatório do Clima, 2025 36; Brasil, 2025a 35). Por sua vez, a comunidade internacional espera que a COP 30 impulsione a implementação dos resultados do primeiro Balanço Global (Global Stocktake), mobilize o financiamento necessário e resulte em um novo ciclo de NDCs alinhado à meta de reduzir o aquecimento global em 1.5°C para evitar o colapso climático (E3G, 2025). Persistem, no entanto, desafios para traduzir a retórica em compromissos concretos e atender às demandas do Sul Global por justiça climática (Power Shift Africa, 2025). Nesse complexo cenário, o acordo Brasil-Japão pode se consolidar como um importante ativo diplomático para a presidência brasileira. Primeiramente, materializa um exemplo de cooperação Norte-Sul. Em segundo lugar, pode gerar experiências concretas em financiamento e tecnologia para serem apresentadas como propostas viáveis na COP 30, alinhadas a temas centrais como transição energética e implementação do Marco Global de Biodiversidade. A colaboração pode, assim, oferecer mecanismos para superar impasses históricos nas negociações. No tocante ao financiamento, poderia demonstrar modelos inovadores de mobilização de recursos. Quanto à transição justa, a cooperação em hidrogênio de baixo carbono e biomassa pode gerar aprendizados sobre os aspectos socioeconômicos da transição. No que se refere à ambição das NDCs, o sucesso da parceria pode encorajar ambos os países a apresentarem metas mais robustas, influenciando outros a seguirem o exemplo. Adicionalmente, o acordo pode catalisar o engajamento de atores não estatais. Caso a cooperação bilateral inclua explicitamente a participação e os saberes de comunidades locais e povos indígenas, especialmente em projetos na Amazônia, poderá amplificar a voz desses grupos na arena climática, em linha com as prioridades da presidência brasileira (Brasil, 2025d; WWF-Brasil, 2025; Chase, 2019). Finalmente, a parceria Brasil-Japão pode ser estrategicamente alavancada pela diplomacia brasileira para construir coalizões de ambição. Em negociações caracterizadas por blocos com posições divergentes (Allan 2025; Power Shift Africa, 2025), o Brasil, como presidente, enfrenta o desafio de facilitar acordos substantivos que elevem a ambição global (Brasil, 2025d). Ao apresentar os frutos dessa parceria, o País pode atrair o interesse de outras nações, permitindo a formação de coalizões temáticas. Essa estratégia de minilateralismo catalítico pode ser uma forma eficaz de exercer uma liderança proativa, moldando os resultados ao apresentar soluções viáveis e construir alianças pragmáticas. Tal abordagem alinha-se à visão da presidência de transformar a conferência em uma “plataforma sistêmica para acelerar resultados” (Brasil, 2025a; Brasil, 2025d). Conclusão A análise da cooperação Brasil-Japão, à luz de seus legados e do panorama da governança ambiental, revela um prospecto significativo. A parceria, fundamentada em complementaridades estratégicas, posiciona-se como um exemplo de Environmental Statecraft pragmático. Essa cooperação pode, portanto, influenciar a agenda e os resultados da COP 30. Tal influência pode se materializar pela demonstração de modelos funcionais de cooperação Norte-Sul — pelo fornecimento de subsídios às discussões sobre meios de implementação — e, crucialmente, pela prerrogativa do Brasil, como presidente da COP, de alavancar esta parceria para formar coalizões temáticas que impulsionem a ambição climática. O alcance dessa colaboração, contudo, não é ilimitado. Seu potencial reside na capacidade de fortalecer políticas nacionais, promover inovação e oferecer um modelo inspirador. Efetivamente, pode constituir um ativo para a diplomacia brasileira. No entanto, o impacto real dependerá da implementação dos projetos, da magnitude dos recursos alocados e da superação de desafios burocráticos e políticos. Persiste o risco de a cooperação se tornar mais simbólica do que substantiva, ou de que interesses econômicos de curto prazo se sobreponham a uma visão de sustentabilidade transformadora. É imperativo reconhecer que uma parceria bilateral, por mais estratégica que seja, não resolverá isoladamente os desafios estruturais do multilateralismo, mas pode oferecer um impulso positivo e demonstrar caminhos viáveis. A sustentabilidade e a efetividade de longo prazo da cooperação dependerão da manutenção do compromisso político, da participação de um leque diversificado de atores — sociedade civil, setor privado, academia — e da capacidade de gerar resultados concretos que reforcem os benefícios mútuos. A integração do acordo com planos de longo prazo, como o Plano Clima do Brasil (Brasil, 2024c) e a estratégia de Transformação Verde (GX) do Japão (OECD, 2025), será fundamental para sua perenidade. Ressalvas persistem: o risco de simbolismo vazio, a captura por interesses setoriais e a desconexão com agendas multilaterais mais amplas exigem vigilância crítica. Todavia, em um contexto de crise policêntrica, a iniciativa destaca-se como um vetor possível — ainda que não suficiente — de renovação do multilateralismo ambiental. A perenidade do projeto demandará não apenas continuidade política, mas a integração orgânica entre diplomacia, inovação tecnológica e justiça socioambiental. É essencial que Brasil e Japão explorem ativamente como os aprendizados dessa parceria podem ser estrategicamente disseminados na arena da COP 30, contribuindo para um resultado ambicioso e eficaz no enfrentamento da crise climática global. [1] “Norm entrepreneurs”, conforme a conceituação seminal de Finnemore e Sikkink (1998), são agentes – que podem ser indivíduos, organizações não governamentais, unidades dentro de organizações internacionais ou mesmo Estados — que, fundamentalmente insatisfeitos com as normas sociais ou políticas prevalecentes, advogam ativamente por concepções alternativas sobre o que constitui um comportamento apropriado. Eles operam a partir de “plataformas organizacionais” e são cruciais principalmente no estágio de “emergência da norma” do ciclo de vida das normas, onde utilizam estratégias de persuasão e “framing” para mobilizar apoio e convencer uma massa crítica de atores, especialmente Estados, a adotar essas novas ideias, visando assim alterar a ordem normativa existente. [2] O minilateralismo nas relações internacionais, conforme Wilnkins et al. (2024), é uma forma de cooperação envolvendo um pequeno grupo de Estados, geralmente entre três e nove, que se unem formal ou informalmente para promover interesses coletivos específicos. Caracteriza-se pela exclusividade, informalidade institucional e foco em questões pontuais, buscando maior agilidade e eficiência em contraste com a amplitude e os processos decisórios mais lentos do multilateralismo. Frequentemente impulsionado pelas limitações percebidas nas grandes organizações multilaterais, o minilateralismo visa oferecer soluções mais rápidas e direcionadas, embora enfrente críticas relativas à sua legitimidade, transparência e ao risco de fragmentar a ordem internacional. Referências Bibliográficas ALLAN, Jennifer; KOSOLAPOVA, Elena; TEMPLETON, Jessica; WAGNER, Lynn. State of Global Environmental Governance 2024. Winnipeg: International Institute for Sustainable Development (IISD), 10 mar. 2025. Disponível em:https://www.iisd.org/publications/report/state-global-environmental-governance-2024. Acesso em: 22 mai. 2025. BARRETT, Scott.Environment and Statecraft: The Strategy of Environmental Treaty‐making. Management of Environmental Quality: An International Journal, v. 14, n. 5, p. 622-623, 2003. BARROS-PLATIAU, A. F.; SØNDERGAARD, N.; PRANTL, J. Brazil in Antarctica and the BBNJ negotiations: a new (blue) environmental policy?. 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Mais um passo rumo à queda: o tarifaço de Donald Trump
Mais um passo rumo à queda: o tarifaço de Donald Trump Cecília Dias1 Nos últimos anos, o domínio econômico dos EUA tem sido gradualmente ofuscado pela ascensão da China, que ocupa atualmente o segundo lugar no ranking das maiores economias globais, segundo o FMI (2025). A nação tem se destacado cada vez mais como uma força estratégica em diversos países, especialmente por meio da Belt and Road Initiative, consolidando seu revigoramento geopolítico. Essa conjuntura, alocada em um período mundial cada vez mais mutável, evoca um panorama de hegemonias cíclicas que marcaram a história, conforme analisado por Makio (2019). Aliado a isso, o segundo mandato de Donald Trump na presidência dos EUA, com sua liderança de direita radical e postura antissistema, vem dispondo a instabilidade nacional a um nível mais alto. Suas principais políticas econômicas, que incidem em uma tarifação excessiva a outros países, alarma governos e mercados ao redor do mundo, principalmente após o anúncio de uma política tarifária recíproca universal em 2 de abril, no chamado “Liberation Day”. A incerteza em torno dos desdobramentos pós-“Liberation Day” configura-se como um fator crucial para compreender o enfraquecimento da hegemonia norte-americana. Desse modo, esta análise objetiva contextualizar alguns passos prévios ao tarifaço de Donald Trump e suas implicações à política internacional. Constata-se que a instabilidade gerada por Trump tende a polarizar o cenário geopolítico, conduzindo-o a um alinhamento binário: ou a Washington, ou a Beijing. “Tarifa” é a palavra mais bonita do dicionário? Em 20 de janeiro de 2025, Trump inicia seu segundo mandato com objetivos econômicos bem claros: acabar com a inflação; reduzir e isentar determinados impostos, como alguns corporativos; e tarifar produtos estrangeiros (USTR, 2025). Concernente ao último, desde que assumiu a Casa Branca, o presidente iniciou a divulgação de compromissos relacionados, como a America First Trade Policy — memorando presidencial direcionado a atores competentes em matéria de política econômica, como o Secretário de Estado, o Secretário do Tesouro, o Secretário do Comércio e o Secretário de Defesa. Nele, Trump insta que fossem elaboradas ações até abril que visassem reduzir o déficit comercial dos EUA, combater práticas comerciais desleais e revisar acordos comerciais (AMCHAM, 2025). A partir desse ponto, uma série de novos atos tarifários foram anunciados pelo presidente. Feito pela autora. Fontes: White House (2025); CSIS (2025). A justificativa central assumida pela administração para a fundamentação dessas medidas recai sobre alguns fatores, dentre eles barreiras comerciais consideradas injustas, absorção da base industrial norte-americana por parceiros comerciais e déficits comerciais desproporcionais, que geram assimetrias comerciais estruturais (The White House, 2025). Nesse sentido, visa-se não somente uma retaliação histórica com as nações, mas também um impulsionamento das receitas americanas para suprir esses “déficits” recorrentes. Contudo, o método utilizado para essa reparação é impreciso a partir do momento que, quanto maiores e mais universais são as tarifas, menor é o comércio restante com outras nações em decorrência do aumento substancial de preços, o que reflete na totalidade das receitas arrecadadas (CSIS, 2025). Se é visado suprir um cenário de desequilíbrio econômico com outros países sob o uso de mecanismos alfandegários, o ideal seria aplicá-los a setores específicos em países que tem superávits persistentes, e não a 185 nações indiscriminadamente. Nesse contexto, entre o início de fevereiro e meados de março, houve uma turbulenta onda de anúncios, indo de assinaturas de novas ordens tarifárias, a pausas subsequentes e a entradas em vigor. Canadá e México, que compõem o USMCA — acordo de livre comércio entre os três países —, e a China compuseram a primeira leva de países afetados. Assim, em 1 de fevereiro, foi ressaltada, em ato da administração, a “crise de saúde pública e emergência nacional” advinda do fluxo de drogas ilícitas, em especial o fentanil pela China, e do constante translado de imigrantes irregulares, que não teriam o devido controle pelas autoridades competentes do Canadá e do México (The White House, 2025). A resolução dessa crise, que deveria seguir um caminho de intensificação da cooperação em matéria de segurança e controle, desviou-se para uma agressiva política de tarifação. Canadá e México seriam tarifados em 25%. Contudo, o referente decreto entrou em pausa por 30 dias a partir de 3 de fevereiro, após negociações entre Trump, Claudia Sheinbaum (México) e Justin Trudeau (Canadá). Com a entrada em vigor em março, produtos não compatíveis ao USMCA — isto é, que não são enquadrados no Acordo — enfrentariam tarifas de 10% a 25% e nisso, uma onda retaliatória foi instaurada (CNN Brasil, 2025). Com relação à China, considerada um desafio econômico único aos EUA (USTR, 2025b), o anúncio em fevereiro já tornou vigente uma taxação de 10% sobre todas as importações chinesas. Em resposta, Beijing prosseguiu com retaliações direcionadas originalmente a fluxos de importação de carvão, de gás natural liquefeito, de petróleo e de alguns veículos automotores. Por conseguinte, a administração norte-americana dobrou a tarifa inicial de 10%, impondo um adicional de 10% no mesmo dia em que as tarifas ao Canadá e ao México entraram em vigor (CNN Brasil, 2025). Desde então, outra série de anúncios, como tarifas sobre o aço, ao alumínio e a peças automotivas, e de retaliações tanto da China quanto do Canadá se desenvolveram. Não obstante, no dia 31 de março, o governo norte-americano lançou a edição 2025 do Relatório de Estimativa Comercial Nacional sobre Barreiras ao Comércio Exterior (NTE), que analisa barreiras de exportação aos EUA e possíveis esforços para a redução (USTR, 2025b). Nesse ano, a edição cita 47 países e a União Europeia (UE) como um só bloco, consolidando mais um passo para o combate de “práticas injustas e não recíprocas, ajudando a restaurar a justiça e a colocar as empresas e os trabalhadores americanos em primeiro lugar no mercado global”, segundo o secretário de comércio, Jamieson Greer (USTR, 2025b). Em síntese, esse documento serviu como base para que, no dia 2 de abril, Trump anunciasse a Ordem Executiva — atos que não requerem aprovação do congresso — para a regulamentação das importações com tarifas recíprocas (The White House, 2025b). A publicação do ato enuncia o enfrentamento de ameaças à economia do país por meio de uma tarifa global de 10% a praticamente todas as importações, com alíquotas específicas a países com maiores déficits comerciais. Segundo a administração, Grandes e persistentes déficits comerciais anuais de bens dos EUA levaram ao esvaziamento de nossa base industrial; inibiu nossa capacidade de escalar a capacidade de fabricação nacional avançada; minou cadeias de suprimentos críticas; e tornou nossa base industrial de defesa dependente de adversários estrangeiros (The White House, 2025b, tradução nossa). E é nesse cenário que advém o “Liberation Day”, ou Dia da Libertação, em declarado estado de “emergência nacional” para a administração e cujo objetivo é restaurar a justiça nas relações comerciais (CNN Brasil, 2025). A taxação de 185 nações representa uma guinada protecionista sem precedentes, marcada por tarifas generalizadas que visam forçar a reciprocidade, mas que, na prática, impõem custos globais e acentuam tensões diplomáticas. No dia 9 de abril, por meio da rede social “Truth Social”, Trump anunciou a suspensão temporária das tarifas com alíquotas superiores a 10% impostas durante o “Liberation Day”. A medida, influenciada por pressões do mercado e de seus próprios assessores, abre espaço para que outras nações retomem negociações com a cúpula econômica e comercial de sua administração. No entanto, a China permanece como exceção à pausa tarifária. O país, principal alvo da atual guerra comercial, já enfrenta tarifas que chegaram a 145%, respondendo com retaliações de até 125% até o momento da redação desta análise (BBC News Brasil, 2025). Em amplo aspecto, o patamar das tarifas anunciadas atingiu o nível mais alto desde 1909 (Bloomberg Linea, 2025), se constituindo como um momento de análise crucial em decorrência das implicações políticas que elas trazem. O tarifaço, como ficou conhecido a série de medidas tarifárias, sob esse panorama de incertezas quanto às negociações neste próximo trimestre, premedita uma nova era perante as relações comerciais. Pressupõe-se, assim, que o comércio internacional se encontra em uma dinâmica de instabilidade, prescindindo uma possível transformação geopolítica irreparável. “Emergência nacional” insufla emergência chinesa Nessa conjuntura de transformações, resta refletir acerca das possíveis disrupções institucionais advindas das políticas econômicas. Em Why Nations Fail (2012), Acemoglu e Robinson preconizam que o sucesso de uma nação forte e rica depende de suas instituições políticas e econômicas inclusivas. Tais instituições asseguram a igualdade de direitos, fomentam o trabalho e a inovação e promovem uma distribuição mais equilibrada do poder e da renda. Em contraste, países que não adotam esse modelo são geralmente marcados por instituições econômicas extrativistas, caracterizadas por insegurança jurídica, por concentração de poder e riqueza, por exploração econômica e por acentuadas desigualdades sociais. Se antes os Estados Unidos tentavam, por meio do soft power, se sustentar como símbolo de um Estado democrático, inclusivo e inovador, hoje é difícil determinar até que ponto essa imagem permanece válida. Em entrevista à NPR (2021), os autores discutiram que a ascensão de forças sociais antidemocráticas no país, somada à transformação do cenário econômico — com a estagnação dos salários, o agravamento das desigualdades e o enfraquecimento das instituições —, vem desintegrando os pilares que antes sustentavam os EUA sob a premissa de excepcionalismo democrático. Com Trump de volta ao poder, esse processo tende a se intensificar de forma mais alarmante. Isso posto, o que se visualiza, sobretudo neste segundo mandato, é um descompasso entre uma “saudosa” institucionalidade mais inclusiva e a agenda política enunciada. Na posse presidencial de Trump, a soma do patrimônio de todos os bilionários presentes totalizava US$ 1,3 trilhão (Exame, 2025). Além disso, com 11 bilionários, o gabinete de Trump tem um patrimônio maior que o PIB de 154 países (UOL, 2025). Isso simboliza não somente um alinhamento desses magnatas na nova administração, como também um traçado rumo a uma administração oligárquica e despreocupada quanto ao fator equitativo de instituições de uma nação forte e rica. Todavia, diferentemente do discurso oficial, que aponta para uma suposta “emergência nacional” causada por práticas e barreiras comerciais injustas de outras nações, os desafios mais graves à segurança nacional estão dentro de suas próprias fronteiras. Indicadores de desigualdade revelam um país cada vez mais dividido, em que o crescimento econômico beneficia desproporcionalmente uma minoria, enquanto amplas parcelas da população enfrentam estagnação salarial, acesso precário a serviços públicos e mobilidade social cada vez mais limitada (SPI, 2025; Money Report, 2025; Inequality, 2025). Desse modo, em lugar da implementação de políticas redistributivas voltadas ao fortalecimento do consumo interno por meio da dinamização da circulação financeira, opta-se por uma abordagem baseada em tarifações agressivas. A estratégia do tarifaço configura-se, portanto, como um mecanismo de pressão econômica internacional, destinado a preservar um modelo que se exime de enfrentar suas próprias fragilidades estruturais — o que, não por acaso, corresponde aos interesses de segmentos vinculados às elites econômicas no poder. Conforme aponta Ocampo (2025), essa proposta política pretende impedir o avanço de projetos voltados à instituição de uma taxação progressiva sobre grandes fortunas, mesmo que a curto prazo sacrifique crescimentos de mercado e de indústria. Ademais, para alguns analistas, já é possível visualizar esse retorno negativo a curto prazo. As tarifas vêm afetando cada vez mais cadeias produtivas globais, aumentando custos de produtos, de insumos e criando incertezas para governos e investidores ao redor do mundo. Nessa direção, dados do FMI (2025) indicam que o crescimento global, neste ano e no próximo, são previstos para serem negativos, apontando recessão. Fonte: FMI (2025). Cumpre ressaltar que, como em qualquer conflito, os maiores riscos e vulnerabilidades recaem não diretamente sobre os governos, mas sobre a população civil. De modo análogo, no atual cenário de escalada da guerra comercial, o risco maior tende não a incidir no mercado, e sim os consumidores. As tarifas, no modo que operam atualmente, reduzem o poder de compra, encarecem produtos e elevam os custos de produção, resultando em desemprego e prejuízos a diversos setores industriais Sob outra ótica, se nem sequer as remotas Ilha Heard e Ilhas McDonald, habitadas apenas por pinguins e localizadas a cerca de 1,7 mil quilômetros da Antártida, foram poupadas do tarifaço, fica evidente o alcance indiscriminado da medida (BBC News Brasil, 2025). O resultado previsto é a desestabilização de uma estrutura econômica construída ao longo de décadas sob as premissas discursivas da cooperação e do livre-comércio, ainda mais com o dólar americano sendo a principal moeda de reserva internacional. Essa desestabilização nos fluxos comerciais tende a aumentar a desconfiança entre as nações. Diante da imposição de tarifas elevadas até mesmo a parceiros comerciais históricos, como Canadá e México, torna-se compreensível que outras nações busquem aliar-se com economias percebidas como mais estáveis e confiáveis. Esse ponto de inflexão fortalece, portanto, a preferência pela China, que se apresenta como alternativa viável e segura, absorvendo os fluxos econômicos desviados pelas políticas tarifárias norte-americanas. Logo, esse movimento para tornar a América grande novamente mais reverbera em sua queda a passos cada vez mais largos. Nessa totalidade, três resultados são esperados: impulsionamento da China no panorama geopolítico, recessão econômica global e suplantamento do livre-comércio como é conhecido. Considerações finais Em análise anterior, dispus que a volta de Trump sinalizaria o aprofundamento das divisões internas nos Estados Unidos e o enfraquecimento das alianças multilaterais (Dias, 2024). Essa nova fase de políticas comerciais agressivas, consolidando uma agenda econômica centrada na confrontação — a chamada Trumponomics —, desafia diretamente os princípios historicamente proclamados do livre-comércio no pós-guerra e compromete a já fragilizada liderança norte-americana na ordem internacional, sobretudo diante do embate com o dragão chinês, principal alvo das medidas tarifárias. Assim, uma suspensão temporária de parte das tarifas por 90 dias não elimina o risco de rupturas prolongadas, tampouco ameniza o impacto imediato sobre cadeias produtivas e fluxos comerciais globais. Nesse cenário, torna-se inevitável a lembrança dos efeitos devastadores da Lei Tarifária Smoot-Hawley nos anos 1930, cujas intenções protecionistas agravaram a Grande Depressão. Por fim, mais do que um episódio isolado, o tarifaço revela-se um sintoma do avanço de políticas unilaterais em detrimento da cooperação internacional, suscitando uma nova era nas relações internacionais marcada por uma fragmentação da ordem global. Nota [1] Esta análise foi elaborada em 10 de maio, e eventuais mudanças significativas no desenrolar dos acontecimentos correlatos, que ocorreram desde então, não foram consideradas pela autora. Referências bibliográficas AMCHAM BRASIL. O que é a America First Trade Policy e quais são os impactos para o Brasil?. Amcham Brasil, 04 fev. 2025. Disponível em: https://www.amcham.com.br/blog/america-first-trade-policy. Acesso em: 8 maio 2025. BLOOMBERG LÍNEA. Tarifaço de Trump entra em vigência e eleva taxas a patamar mais alto desde 1909. Bloomberg Línea, 2025. Disponível em: https://www.bloomberglinea.com.br/internacional/tarifaco-de-trump-entra-em-vigencia-e-eleva-taxas-a-patamar-mais-alto-desde-1909/. Acesso em: 8 maio 2025. 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O fim da USAID: qual o futuro da cooperação internacional?
O fim da USAID: qual o futuro da cooperação internacional? Marina Morena Caires Desde o primeiro dia de seu segundo mandato, Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, deixou claro sua intenção de destituir a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Uma ordem executiva assinada no dia 20 de janeiro de 2025 congelou fundos para assistência internacional e ordenou uma revisão do trabalho da USAID, que será conduzida pelo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), na sigla em inglês), coordenado por Elon Musk (Debusmann Jr., 2025). Após o início das investigações do DOGE, diversos projetos da USAID foram pausados ou terminados e milhares de funcionários foram demitidos ou impedidos de trabalhar nos seus projetos (Sedon, 2025). O site da agência foi bloqueado e agora somente uma notificação de licença administrativa avisando os funcionários do seu futuro está acessível ao público. A justificativa de Trump para essa ação seria o controle de gastos estatais desnecessário que não beneficiam ou interesses estadunidenses e não colocam a “America First”, embora a USAID utilize menos de 1% do orçamento federal (Sedon, 2025). Contudo, o desmonte da USAID não levanta somente questionamentos sobre suas consequências imediatas para os projetos que ela financia, mas também sobre o futuro do assistencialismo Norte-Sul e seu impacto para a organização da cooperação global. Dessa forma, essa análise busca entender quais serão os resultados do fechamento da USAID para a manutenção do atual modelo de cooperação dos países desenvolvidos, guiado pelo sistema de Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e quais impactos ela terá na manutenção da cooperação Norte-Sul. A USAID, seus projetos e seus problemas A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional foi estabelecida por decreto executivo do então presidente, John F. Kennedy, em 1961, por meio do Foreign Assistance Act,aprovado pelo Congresso (Johnston, 2025). Na prática, isso significa que, independentemente da vontade de Trump de fechar a agência, ele não poderia o fazer sem a aprovação do Congresso. Sem maioria na Casa para realizar tal feito, sua saída tem sido transformar a USAID em um ramo do State Department, controlado pelo Executivo (Sedon, 2025). Quando foi criada, no contexto da Guerra Fria, o objetivo da agência de manutenção do poder e da influência dos Estados Unidos em outros países frente a União Soviética por meio da promoção de valores estadunidenses de democracia, direitos humanos e desenvolvimento, era claro (Johnston, 2025). Em 1960, com a criação daOCDE, e, posteriormente, em 1969, com a criação do conceito de Assistência Oficial ao Desenvolvimento pelo Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (DAC, na sigla em inglês), os EUA passaram a usar essa medida para guiar sua ajuda externa. A AOD é definida pela OCDE como o apoio financeiro de doadores oficiais para recipientes — países de baixa e média renda — em diversas áreas essenciais, como saúde, educação e infraestrutura (OCDE, s.d), exceto apoio militar. Essa assistência ocorre em forma de subsídio ou empréstimos do estilo “soft” loan — com condições mais favoráveis, como juros abaixo do mercado (OCDE, s.d). Atualmente, a USAID foca em promover democracia, crescimento econômico e desenvolvimento humano no mundo, sendo a principal agência de promoção de ajuda externa do país (Foreign Assistance, s.d), principalmente em forma de cooperação bilateral. Ela financia diversos setores socioeconômicos, como humanitário, de saúde e população, governança, educação, agricultura, infraestrutura, entre outros, com diversas subcategorias como apoio a projetos de prevenção e tratamento de AIDS. Os Estados Unidos também é o maior doador de AOD do grupo dos membros do DAC, tendo disponibilizado, em 2024, US$ 63,3 bilhões de dólares, quase o dobro do valor da Alemanha, a segunda maior doadora (OCDE, 2025b). O corte de gastos da agência terá um impacto real na vida de milhares de pessoas que recebem contribuições por meio do financiamento prestado pelos Estados Unidos, em especial nas áreas de saúde e assistência humanitária de emergência.Em relação aos países beneficiários de AOD, um dos maiores receptores de assistência nos últimos anos é a Ucrânia, após o início da guerra com a Rússia, seguida por países da África Sub-Saariana, do Oriente Médio e do norte da África (Foreign Aid, 2024). No último ano, o país do leste europeu recebeu quase seis vezes mais doações que o Congo, contabilizando mais de seis bilhões de dólares (Foreign Aid, 2024). Em 2024, os três principais gastos de AOD dos EUA foram com: Auxílio Humanitário, somando US$ 9,9 bi, dos quais 9,6 bi foram para resposta emergencial; Saúde e População, com US$ 9,5 bi, dos quais 5,4 bi eram de contribuição para luta contra HIV/AIDS; e Governança, com US$ 6,9 bi dos quais 6,5 bi foram alocados para governos e sociedade civil (Foreign Assistance, 2024). A USAID, além de financiar diversos projetos sociais, como para tratamento do HIV/AIDS, também é responsável por grandes financiamentos a instituições e organizações multilaterais, como o Banco Mundial e o World Food Program (WFP) (The Lancet, 2025). Com o corte de gastos, todos esses valores alocados a apoio humanitário, emergências, saúde e governança, além do dinheiro, muito vezes para apoio do setor econômico, injetado em organizações multilaterais criará um rompo no orçamento desses receptores. Contudo, a prática de AOD sofre críticas e pedidos de reforma desde antes de Trump desestruturar a USAID. A crítica principal no aspecto macro, sem avaliar projetos específicos e seus impactos locais, é que o mecanismo de aid estimula e mantém a dependência dos receptores em relação aos doadores, ao invés de promover desenvolvimento, contrariando a missão declarada da AOD (The Lancet, 2025). Esse modelo assistencialista opera sob uma lógica “top-down”, impondo objetivos de desenvolvimento universalizados (“one-size-fits-all”), fundamentados em pressupostos ocidentais de economia liberal e democracia representativa. Isso se dá por três motivos principais: (a) a AOD reforça frequentemente os interesses do doador mais do que do receptor; (b) impacta a receita dos países e dificulta o planejamento orçamentário interno; e (c) enfraquece e inibe o desenvolvimento das instituições e governos locais. O primeiro motivo é resultado da interação entre o histórico de objetivos, o discurso e o uso de fato da AOD. O conceito, junto da OCDE, foi criada para estabelecer a influência dos Estados Unidos e seus aliados no restante do mundo e para concretizar sua ordem mundial no pós-guerra, sendo um mecanismo de impulsionamento de políticas e de crenças ocidentais (Delgado, 2018). Apesar do seu discurso de apoio ao desenvolvimento econômico e ao bem-estar social, dois conceitos guiados pela visão ocidental do que seria desenvolvimento, a aplicação de financiamento é focada nos interesses do doador. Ao longo dos anos, cada vez mais os doadores expandiram o leque do que seria AOD para englobar seus interesses domésticos de segurança, migração, comércio, entre outros, apoiando projetos nessas áreas e deixando de lado os supostos objetivos assistenciais iniciais (Ahmed et al., 2025), como o apoio exponencial à Ucrânia durante o governo Biden em comparação com outras crises humanitárias. Esse histórico dilui a credibilidade dos países doadores e dificulta a obtenção de dados sobre a AOD, devido à distorção das práticas originais pelos doadores, saindo das delimitações desse tipo de assistência (Ahmed et al., 2025). Além disso, o grande número de doações termina por afetar a receita do país receptor e o seu planejamento orçamentário. Os fluxos enormes de auxílio para países de baixa renda, por vezes representando uma parte significativa do PIB local, e a sua volatilidade, podendo sofrer cortes ou mudança de destino, impactam a forma que o governo receptor planeja o seu orçamento, além da dificuldade de lidar com uma grande quantidade de dinheiro (Moss et al., 2006). A recepção de dinheiro constante torna os planejadores mais lenientes e interessados em acomodar os desejos dos doadores do que do público, resultando em fraude, corrupção e má gestão (The Lancet, 2025; Moss et al., 2006). A geração de uma receita interna é essencial para desenvolver um senso de responsabilidade gestora e para estabelecer fortes organizações nacionais (Moss et al., 2006). Por fim, o enfraquecimento de instituições nacionais é um sintoma não só da sua eficiência limitada, em países com governança imperfeita, mas também da retirada de financiamento interno, dependendo somente da AOD. Por vezes, o grande fluxo de projetos e de doadores faz com que os poucos servidores públicos qualificados tenham que passar mais tempo cuidando dessas atividades do que das necessidades dos civis (Moss et al., 2006). O estabelecimento de canais externos de financiamento pode levar a imposição de burocracias em ministérios já subfinanciados (The Lancet, 2025) e, por muitas vezes, com pouco ou nenhum apoio governamental efetivo. Assim, se alimenta um ciclo de dependência do capital estrangeiro para projetos específicos que demandam atenção estatal para prestação de contas e manutenção dos fluxos de AOD sem contribuir de fato para o orçamento das instituições, Assim, o discurso de foreign aid como uma forma de amostra de generosidade dos mais desenvolvidos para os mais necessitados esconde, frequentemente, o impacto negativo do interesse dos doadores e suas condicionalidades e cobranças (Mawdsley, 2012). O sistema de Assistência Oficial ao Desenvolvimento está, há muito tempo, entrando em falência e deixando como vítimas os países receptores e suas populações — alguns completamente dependentes do apoio externo. Trump não é o único líder de nações doadores que começa a fechar suas portas para o mundo externo citando necessidade de foco nas crises internas. As suas críticas à USAID só reforçam o caráter político da foreign aidcomo uma arma de influência e de controle externo que, agora, passa a não ser mais tão prioritária. Vácuo estadunidense: e os outros doadores? A diminuição do interesse na assistência internacional como uma política externa valiosa não é um fenômeno somente estadunidense. Na OCDE, a grande maioria dos países doadores são europeus, constituindo sete dos dez maiores doadores de 2024, somando US$ 90,2 bilhões (OCDE, 2025a). Contudo, ainda assim não é suficiente para cobrir a lacuna dos Estados Unidos, principalmente com as políticas de cortes de gastos para AOD carregadas por vários países da OCDE. Em teoria, o acordo é que os doadores da OCDE entreguem 0,7% do seu PIB para fins de foreign aid. Na prática, a tendência é outra. Apesar de um aumento da AOD da Noruega de US$ 170 milhões para ONGs (Gill, 2025), essa escolha é uma exceção. O Reino Unido, 2º maior doador europeu e 3º no geral em 2024 (OCDE, 2025a), anunciou, em fevereiro de 2025, que o orçamento de aid receberia um corte de 0,5% do PIB para 0,3%, a fim de financiar o aumento de despesas de defesa (Crerar; Stacey, 2025). A Alemanha, maior doador europeu, cortou US$ 500 milhões do seu orçamento de 2023 para 2024 como parte de corte de gastos, a Holanda anunciou cortes de mais de 2/3 nos próximos 3 anos e a Bélgica removerá 1/4 do orçamento esse ano (Gill, 2025). Esse ano, a França também tenta aprovar orçamento com corte de quase 40% para assistência ao desenvolvimento (Hird, 2025). Dessa forma, essas medidas são parte de um conserto de políticas desesperadas de governos europeus para cortar gastos, recuperar suas economias em desaceleração e lidar com o aumento de custos devido à guerra russo-ucraniana (Gill, 2025). Este cenário de guerra na Europa contribuiu para o direcionamento de políticas direcionadas à segurança nacional. Os antigos doadores se voltam para seus interesses como primeiro plano, preferindo realocar parte da AOD (a qual representa menos de 1% do seu PIB e, em muitos casos, menos de 0,7%) para atividades de interesse próprio, como segurança e migração (Csaky; Repucci, 2025). Com a ascensão de novos doadores e investidores, como os países emergentes e o setor privado, e novas formas de cooperação para o desenvolvimento, como as políticas chinesas de cooperação de ganhos mútuos, com foco em financiamentos voltados ao desenvolvimento econômico e à infraestrutura (Burke, 2025), a desatualizada AOD deixa de ser prioridade. O Sul Global passa a reavaliar a cooperação para o desenvolvimento, abandonando a noção verticalizada “top-down” de recebimento de auxílio e transferência de capacidade técnica para atender a critérios dos doadores, em favor de uma abordagem de desenvolvimento mútuo, ancorada nas necessidades locais. A China, enquanto segunda maior potência global, não recorre ao discurso de assistencialismo altruísta — tal como os doadores da OCDE —, até porque, conforme demonstra a experiência da AOD, tal modelo não se sustenta na prática. À medida que a influência tradicional da assistência do Norte Global perde eficácia, países europeus e os Estados Unidos redirecionam suas estratégias para uma nova competição em cooperação internacional. Investem, assim, em projetos capazes de rivalizar com iniciativas chinesas, relegando a segundo plano os impactos de longo prazo sobre os países dependentes de auxílio. Na Europa, desde 2021, os investimentos em acordos para construção de infraestrutura, de projetos digitais e de clima aumentam exponencialmente, como o Global Gateway programme, em competição com a Nova Rota da Seda (Gill, 2025). Repensando AOD… ou não? Após anos de críticas, ascensão de governos com fortes políticas de austeridade e a criação de laços de dependência, principalmente nas áreas de saúde global, a AOD sobreviverá e será finalmente reformulada? A resposta é sim e não. Apesar da diminuição nas contribuições para a AOD, é pouco provável que ela deixe de existir de fato nos próximos anos. O discurso de apoio internacional e de nações benevolentes ainda pode ser utilizado para angariar soft power e suporte político frente a outros atores como a China, os quais devem ser vistos como perigosos e interesseiros. Contudo, há grande chance de ela começar a se tornar obsoleta ou ser substituída aos poucos por outras nomenclaturas e projetos de cooperação para o desenvolvimento, devido a sua perda gradual e constante de credibilidade. Para competir com a China, principalmente em locais como a África e a Ásia, será preciso mostrar mais do que apoio humanitário “top-down” e atualizar o discurso para uma cooperação com frutos de longo prazo, como a construção de infraestrutura. O rombo deixado pela USAID e sua assistência superficial, além da remoção de outros doadores tradicionais, sem oportunidade dos governos e instituições locais se ajustarem ao fim do financiamento afetem a credibilidade dos países e da AOD. As críticas de Donald Trump a USAID, afirmando que ela não serve os interesses estadunidenses, só ecoa um sentimento de outros doadores tradicionais que não mais a veem como importante para a política externa. Por isso, há poucas chances dela ser reformulada de forma a manter sua essência de cooperação e auxílio “sem interesses”, superando as críticas e a maneira como são conduzidos os projetos no âmbito local. O crescimento da cooperação Sul-Sul e de uma bandeira de apoio mútuo ao desenvolvimento impedido ou não provido pelo Norte Global se torna, aos poucos, um novo paradigma de cooperação internacional. A incapacidade dos doadores de manterem seu antigo esquema para competir por influência em um novo cenário geopolítico deixa milhões de vítimas ao redor do mundo, que pagarão o preço desse reajuste na ordem global. Referências AHMED, M.; CALLEJA, R.; JACQUET, P. The Reform of Official Development Assistance: Why It’s Needed and What Should Change. In: AHMED, M.; CALLEJA, R.; JACQUET, P. The Future of Official Development Assistance: Incremental Improvements or Radical Reform? Washington DC: Center for Global Development (CGD), 2025. Capítulo 1, p. 15-31. BURKE, C. Aid in Decline: Rethinking Overseas Development Assistance in a Changing World.The World Financial Review, 23 fev. 2025. Disponível em: https://worldfinancialreview.com/aid-in-decline-rethinking-overseas-development-assistance-in-a-changing-world/. Acesso em: 21 abr. 2025 CRERAR, P.; STACEY, K. Starmer announces big cut to UK aid budget to boost defence spending. The Guardian, 25 fev. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/politics/2025/feb/25/starmer-planning-big-cuts-to-aid-budget-to-boost-defence-spending-say-sources. Acesso em: 21 abr. 2025. CSAKY, Z.; REPUCCI, S. Filling the USAID gap: How Europe can step up to support democracy. Centre for European Reform, 11 mar. 2025. 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Destaques
O salto geoestacionário: perspectivas da cooperação sino-brasileira com o CBERS-5
O salto geoestacionário: perspectivas da cooperação sino-brasileira com o CBERS-5 Por Nathália Rabelo Brasil e China assinaram uma Declaração Conjunta de Intenções para o desenvolvimento do satélite CBERS-5, em junho de 2024. O documento foi assinado durante a VII Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN), presidida pelo vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin, e pelo vice-presidente chinês, Han Zheng (Brasil, 2024). As Partes pretendem assinar Protocolo adicional em julho de 2025, às margens da Cúpula dos BRICS. Esse satélite, o primeiro geoestacionário na órbita brasileira, será de extrema importância para a autonomia do Brasil, visto que há apenas três satélites com essa característica no ocidente, todos norte-americanos. Dessa forma, essa análise pretende destacar os diferentes impactos, desafios e interesses nacionais, técnicos e políticos, na construção do CBERS-5, além de mapear a parceria sino-brasileira em satélites. O programa CBERS Na década de 80, a China traçava objetivos para um desenvolvimento industrial e espacial intensivo, visando elevar suas competências científicas e tecnológicas. Em paralelo, programas de satélites da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB) incentivaram pesquisas na área para fortalecer a economia interna e as aplicações industriais, o que levou à uma busca por parceiros internacionais. A China havia adquirido experiência na construção de satélites e foguetes lançadores, e o Brasil poderia contribuir com sua familiaridade com altas tecnologias e um parque industrial mais moderno que o chinês à época. Ambos os países possuem áreas despovoadas e com vastos recursos naturais, além de áreas com grandes potenciais agrícolas e ambientais que necessitavam de monitoramento constante, então surgiu a possibilidade de cooperação. Em julho de 1988, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) do Brasil assinou um acordo de parceria com a Academia Chinesa de Tecnologia Espacial (CAST) para o desenvolvimento de um programa de construção de satélites avançados de sensoriamento remoto, chamado China-Brazil Earth Resources Satellite, o CBERS (INPE, 2024). Com o intuito de implantar um sistema completo de sensoriamento remoto de nível internacional, os dois países uniram esforços para o desenvolvimento e transferência de tecnologias sensíveis, além de criar um sistema de responsabilidade financeira dividido inicialmente como 70% chinês e 30% brasileiro (INPE, 2024). Essa parceria rompeu os padrões que restringiam os acordos internacionais à transferência de tecnologia e intercâmbio entre pesquisadores de nacionalidades diferentes. Coordenado pela Agência Espacial Brasileira (AEB) - autarquia vinculada ao MCTI - e pela Administração Nacional Espacial da China (CNSA), o programa CBERS tem como executores o INPE e a CAST. O CBERS-1, primeiro satélite do programa, foi lançado em 1999 e se manteve até 2003, ano do lançamento do CBERS-2. Os dois têm constituições idênticas, e visavam o sensoriamento remoto, que repetisse as imagens para o Sistema Brasileiro de Coleta de Dados Ambientais (INPE, 2024). O sensoriamento remoto é utilizado por praticamente todas as instituições ligadas ao meio ambiente, as imagens são usadas no controle do desmatamento e queimadas na Amazônia Legal, no monitoramento de recursos hídricos, ocupação do solo, áreas agrícolas, crescimento urbano e inúmeras outras aplicações. Assim, os países ingressaram no restrito mercado de imagens de satélites das nações desenvolvidas, podendo inclusive enviar as imagens para terceiros, se aprovado por ambos, como é feito para alguns países africanos desde 2007 (INPE, 2024). Em 2002 assinaram a continuação do programa para dois novos satélites, o CBERS-3 e 4, com nova divisão de investimentos, em 50% para cada. Eles representaram uma evolução, com desempenhos geométricos e radiométricos melhorados, logo, reproduzem imagens com maior precisão e qualidade (ibid.). Visto que o CBERS-3 só teria viabilidade de ser lançado quando o 2 já tivesse parado de funcionar, concordaram em lançar o CBERS-2B, para prolongar o uso sem prejuízos enquanto era desenvolvido o novo satélite. O 2B operou de 2007 a 2010, mas ocorreu uma falha no lançamento do CBERS-3, resultando na antecipação do lançamento do CBERS-4, para 2014. Graças a disponibilidade de equipamentos, os responsáveis decidiram desenvolver também o CBERS-4A, com maior complexidade e câmera superior na resolução geométrica e espectral, foi lançado em 2019 com projeção de vida útil maior (INPE, 2024). CBERS/INPE - Divulgação O CBERS-6, já aprovado pelo Congresso Nacional, representa a continuidade dos satélites de última geração, trazendo um avanço significativo no sensoriamento remoto. Diferente dos modelos anteriores, ele utiliza a tecnologia Radar de Abertura Sintética (SAR) em vez de óptica, o que possibilita o sensoriamento mesmo na ausência de luz e através das nuvens, fator importante para regiões úmidas e com grandes formações de nuvens como a Amazônia (G1, 2023). Esse satélite teve seu Protocolo Complementar aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2024 e tem previsão de lançamento para 2028. É interessante citar que o Módulo de Serviço deste satélite será desenvolvido inteiramente pela parte brasileira (G1, 2023). Essas mudanças técnicas podem repercutir ainda mais no avanço e fortalecimento do setor espacial brasileiro, assim como na base industrial tecnológica e na economia. Os dados dos satélites da família CBERS tornaram-se imprescindíveis para o monitoramento de florestas, a conservação da biodiversidade, a previsão e mitigação de efeitos de desastres naturais, o mapeamento de áreas agrícolas e do crescimento urbano, entre outras aplicações. Ademais, o programa alavancou a indústria espacial brasileira, ao impulsionar o surgimento de empresas na Base Industrial de Defesa (BID) para atender às novas demandas, produzindo equipamentos e outros componentes. O CBERS-5 Ao contrário de seus antecessores, o CBERS-5 será um satélite meteorológico geoestacionário, o que significa que permanecerá em uma órbita fixa, acompanhando o movimento da Terra e proporcionando uma observação contínua do Brasil. O Brasil, por meio do INPE, já produz satélites de baixa órbita, tanto em cooperação com os chineses quanto em empreendimentos nacionais, entretanto, a tecnologia geoestacionária representa um salto de complexidade e um avanço expressivo no programa espacial brasileiro. Atualmente, apenas três satélites norte-americanos apresentam a característica de carga útil meteorológica do projeto do CBERS-5 no Ocidente, o que torna o Brasil dependente dos dados dos Estados Unidos para realizar seus modelos climáticos, que chegam com dias de atraso e podem comprometer a previsão do tempo (Brasil…, 2025). Com o CBERS-5, o país terá soberania de dados meteorológicos, e além de garantir melhor acurácia de previsão do tempo por dados em tempo real, com benefícios claros a setores como agronegócio, energético, ambiental e urbanísticos, estará mais preparado para identificar e responder a desastres naturais extremos como a enchente no Rio Grande do Sul, ocorrida em 2024, e outros eventos como secas e tempestades, cada vez mais frequentes com o aprofundamento das mudanças climáticas e do aquecimento global (Brasil…, 2025). Além da finalidade meteorológica, o CBERS-5 também contará com finalidades de comunicação (permitindo a distribuição de sinais de telefonia, Internet e televisão); navegação, e uso militar. Atualmente, o único satélite de comunicação geoestacionário brasileiro é o SGDC-1 (Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas 1), que foi construído por empresa franco-italiana e lançado em 2017, cujo controle é realizado no Brasil em estações localizadas em áreas militares, sob coordenação do Ministério da Defesa e da Telebrás. No entanto, não houve participação efetiva brasileira no desenvolvimento, construção, montagem, integração e testes do SGDC-1 (Conheça…, 2025). Nesse contexto, a proposta do CBERS-5 permitirá que o Brasil avance em direção ao domínio tecnológico de um sistema geoestacionário, participando efetivamente de todas as fases do ciclo de vida de uma plataforma orbital geoestacionária, desde a concepção à operação, assim como ocorreu com os outros satélites do programa CBERS, que propiciou as condições para o desenvolvimento do primeiro satélite de órbita polar totalmente nacional, o Amazônia-1. Oportunidades e desafios Os cinco países que possuem mais de 100 milhões de habitantes, PIB maior que US$ 750bi e extensão territorial maior que 3 milhões de quilômetros quadrados são: Brasil, China, Estados Unidos, Índia e Rússia. Desses cinco, apenas o Brasil não possui domínio da tecnologia geoestacionária, que demonstra ser uma tecnologia necessária para alavancar o desenvolvimento econômico e social dos países supracitados (Neto, 2021). É importante destacar que a diplomacia científica não se aplica ao desenvolvimento de tecnologias disruptivas, como o caso de um sistema geoestacionário, visto que a regra geral no setor espacial é de não compartilhar conhecimento que permita o domínio de tecnologias críticas. Ainda sim, em função da longa e bem sucedida cooperação no setor espacial com o Brasil, por meio do programa CBERS, a China é o único país que tem demonstrado disposição para compartilhar riscos e custos de desenvolvimento conjunto de um sistema com este grau de sofisticação. Nesse sentido, trata-se de uma oportunidade importante para o desenvolvimento do setor espacial brasileiro, com envolvimento da indústria nacional em desafios tecnológicos de fronteira, que concorre para colocar o Brasil no seleto grupo de países que dominam esta tecnologia, gerando benefícios econômicos relevantes, impactos significativos no monitoramento ambiental que se refletem na elevação da qualidade de vida e bem-estar da sociedade e que dificilmente será vislumbrada por meio de outra cooperação, com compartilhamento de custos e riscos, no curto prazo. Embora esteja entre as linhas do Plano Decenal de Cooperação Espacial 2023-2032, (China, 2023) o projeto do CBERS-5 vem sofrendo empecilhos técnicos e políticos. A ideia inicial era que o Protocolo Complementar do satélite fosse assinado pelos presidentes na ocasião da visita do Presidente Xi Jinping ao Brasil, em novembro de 2024. Entretanto, tendo em vista que a concepção do referido satélite envolve procedimentos, tecnologias e equipes bem distintas dos satélites concebidos anteriormente no âmbito do programa CBERS, as discussões técnicas do satélite estão demorando mais que o previsto. Nas negociações já em curso, dois pontos podem se tornar obstáculos ao lado brasileiro: a recepção de dados e a operação do satélite. Os chineses propuseram receber os dados do satélite em tempo real, enviando as informações geradas nele a outros satélites geoestacionários chineses diretamente, através de Interlink. Já a posição brasileira pede que os dados gerados do território nacional sejam recebidos antes aqui, e transmitidas em seguida ao lado chinês, por se tratar de uma questão de soberania nacional. Em relação à operação do satélite, os chineses têm interesse em operar o satélite de forma compartilhada, o que para o lado brasileiro não há justificativa técnica para essa demanda, especialmente devido à possibilidade de afetar o monitoramento de desastres de grandes proporções, por não ter a operação do satélite disponível naquele momento. Por estes motivos, críticas estão sendo feitas à construção do CBERS-5 por parte de opositores à cooperação com a China, especialmente devido a um projeto prévio de construir um satélite geoestacionário de meteorologia, o chamado GEOMET-1, do Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) de 2022-2031 (Carlos, 2024). Este satélite seria 100% nacional, o que poderia, de fato, ser mais benéfico para a autonomia brasileira, mas demandaria gastos e tempo de construção muito elevados em relação ao CBERS. Além disso, há preocupações também acerca da incerteza sobre a transferência de tecnologia, que é muito importante para a CT&I brasileira, e o compartilhamento de dados com os chineses, visto que satélites com essas configurações podem captar lançamentos de foguetes e mísseis nas proximidades, o que em retórica pode ser o real interesse chinês, para monitorar os Estados Unidos (Carlos, 2024). Neste sentido, é necessário um corpo técnico mais apropriado para a definição desta missão meteorológica geoestacionária, a fim de prover as condições para que o governo impulsione o desenvolvimento social e econômico a partir do desenvolvimento do projeto, sem prejudicar a autonomia e soberania brasileira. Entende-se que os pontos podem ser bem dirimidos em favor do nível político e no plano de cooperação das sinergias. Ademais, a definição do CBERS-5 como projeto prioritário, poderia avançar para compromissos chineses de transferência de tecnologia para diversas partes do projeto em que o Brasil ou ainda não detém tecnologia, ou precisa de atualizações. Isso pode envolver, por exemplo, a parte de controle do módulo de serviço do satélite geoestacionário, ou das próprias cargas úteis do satélite. Geralmente tais transferências se dão por meio de offsets, em que a compensação tecnológica se dá por meio de compras com valores adicionais envolvidos. Nesse caso de aprofundamento da cooperação, a transferência se daria de forma voluntária, sem contrapartida financeira pelo lado brasileiro. Considerações finais A cooperação com a China, como já demonstrado nos outros satélites, tem grande potencial para aumentar as capacidades da indústria nacional em tecnologias avançadas, por meio de transferência de tecnologia e know-how. Além disso, a contribuição sino-brasileira na disseminação de dados e no desenvolvimento de capacidades nessa área é amplamente reconhecida internacionalmente. Um exemplo disso é o "CBERS For Africa", iniciativa lançada em 2007, que distribui gratuitamente imagens dos satélites para países africanos. Esse projeto foi um marco importante nos esforços chineses e brasileiros de estreitar laços e cooperar com os referidos países. No âmbito da Declaração Conjunta, está explicitado o interesse do Brasil em gerar informações úteis para os países da região, com a intenção de compartilhá-las com toda a América Latina e o Caribe, além de outros interessados. Esse ato pode fortalecer a liderança do Brasil na região, visto que os dados gerados seriam de grande valor para os países, especialmente em áreas críticas como monitoramento ambiental, previsão de desastres naturais e planejamento agrícola. A distribuição estratégica desses dados colocaria o Brasil como líder regional no enfrentamento de desafios comuns, além de reforçar sua posição como polo tecnológico e inovador na região. Adicionalmente, isso promoveria o desenvolvimento sustentável e a cooperação em C&T. Assim, considerando o sucesso do programa CBERS nas versões anteriores, é possível inferir que a cooperação em torno do CBERS-5 também será extremamente benéfica e produtiva. Além dos benefícios já mencionados, essa colaboração representa uma oportunidade para o governo brasileiro, por meio de instituições como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o MCTI, o INPE, a AEB e outras entidades relacionadas, impulsionar o interesse civil e militar no programa espacial brasileiro. Esse avanço estaria relacionado à geração de dados, previsões e ao bem-estar social, em um setor ainda pouco valorizado, mas que carece de maior investimento, atenção, profissionais qualificados, infraestrutura e outros recursos essenciais. A aplicação de tecnologias disruptivas pode transformar esse cenário e trazer inúmeros benefícios. Referências Brasil e China assinam acordo para construção conjunta de satélite. 2024. https://www.gov.br/inpe/pt-br/assuntos/ultimas-noticias/brasil-e-china-assinam-acordo-para-construcao-conjunta-de-satelite. Acesso em: 10 mai. 2025. Brasil e China avançam na cooperação espacial com foco no satélite CBERS-5. 2025. https://www.gov.br/inpe/pt-br/assuntos/ultimas-noticias/brasil-e-china-avancam-na-cooperacao-espacial-com-foco-no-satelite-cbers-5. Acesso em: 10 mai. 2025. CARLOS, R. China e Brasil assinam acordo para “Fazer uma gambiarra” no satélite CBERS-5 e transformá-lo em Geoestacionário e de Meteorologia | Revista Foguetes Brasileiros - Sua principal fonte sobre o Programa Espacial Brasileiro. 2024. https://foguetesbrasileiros.com/china-e-brasil-assinam-acordo-para-fazer-uma-gambiarra-no-satelite-cbers-5-e-transforma-lo-em-geoestacionario-e-de-meteorologia/07/06/2024/ . Acesso em: 10 mai. 2025. CHINA, C. B. 13o acordo entre Brasil e China trata de mais pesquisa científica - Camara Brasil China. 2023. https://camarabrasilchina.com/13o-acordo-entre-brasil-e-china-trata-de-mais-pesquisa-cientifica/ . Acesso em: 10 mai. 2025. Conheça o SGDC. 2025. https://www.telebras.com.br/telebras-sat/conheca-o-sgdc/. 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