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análise de conjuntura
PET-REL

por Willian Silva de Oliveira Alves

 

Quando você pensa em “futuro da humanidade" qual a primeira coisa que vem à sua mente? Talvez sociedades tecnológicas que atingiram o equilíbrio entre desenvolvimento e preservação do planeta? Um mundo capaz de gerir conflitos sem derramamento de sangue? E quais pessoas você imagina fazendo parte desse “futuro”?

 

Em 2019, a escritora e ativista Morena Mariah, durante uma palestra para a plataforma TEDx, propôs uma dinâmica para sua plateia: “quero que vocês fechem os olhos e imaginem como será a vida das pessoas daqui há 100 anos”. Logo após, pediu para que abrissem os olhos e perguntou: “quantas de vocês imaginaram pessoas negras vivendo nesse futuro?”. Esse exercício gera uma reflexão: em que local estão as pessoas negras no imaginário de um futuro da humanidade? Para responder esse questionamento, pessoas negras têm recorrido a um local específico no  espaço-tempo: o passado. Esse movimento que transita entre a retrospectiva e o prolepse [1] é conhecido como afrofuturismo.

 

O afrofuturismo

 

O termo foi empregado pela primeira vez pelo crítico cultural Mark Dery no ensaio Black to The Future (1994), entretanto o conceito de afrofuturismo surgiu em meados da década de 1960, tendo como expoente o músico Sun Ra (1914-1993). Em sua definição, o afrofuturismo é um movimento estético global que abrange arte, cinema, literatura, música e pesquisas acadêmicas, difundido por autores africanos e afrodiaspóricos (YASZEK, 2013). Este tem o objetivo de “recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo futuro através da própria ótica [negra]” (KABRAL,  2020). 

 

Como dito acima, a corrente afrofuturista abrange diversas narrativas de ficção especulativa [2], estimulando a difusão e ampliação de estéticas e culturas africanas por meio da união de códigos tribais e de ficção científica. Para tal, propõe o resgate da história do negro através de ícones africanos, concomitantemente com a elaboração de mecanismos que buscam a construção de um futuro negro utópico em meio à distopia na qual é forçado a existir [3] (YASZEK, 2013). Em outras palavras, o afrofuturismo é a ideia “radical” de que pessoas negras existirão  no futuro da humanidade.

 

 

 

Figura 1 - A estética afrofuturista

Fonte: Texprima (2019)

 

 

A estética é política

 

Como dito, o movimento afrofuturista se debruça sobre diversas áreas que se conectam por meio de um viés pan-africanista e diaspórico. As culturas e identidades negras são indissociáveis da experiência da escravidão moderna e de sua herança racializada espalhada pelo Atlântico. É na memória da escravidão e na experiência do racismo e do terror racial que muitas vezes se fundou politicamente a identidade cultural dos negros no Ocidente (MATTOS apud GILROY,  2002).  A estética surge, portanto, como “um fator importante da resistência negra, com o seu potencial político de reconstruir a imagem do corpo negro em qualquer tempo. Para isso, entende-se a necessidade de articular essas ações através da utilização de códigos que constroem as formas de representar a negritude.” (SILVA; SANTOS; AMSTEL, 2019, p. 8)

 

Artistas como Beyoncé têm usado de sua influência para trazer discussões afrocentradas à tona. Em 31 de agosto de 2020, a cantora lançou o álbum visual “Black is King”, que exalta a ancestralidade africana mesclada à uma ótica futurista. O filme Black Panther (2018) que se passa no contexto do país utópico Wakanda, apresenta uma junção entre a estética negra sci-fi e traços de ancestralidade africana. No Brasil, o escritor Fábio Kabral dá continuidade ao movimento através da obra O Caçador Cibernético da Rua 13 (2017).

 

 

Figura 2 - Beyoncé em Black is King 

Fonte: The Cut (2020)

 

O  negro é extraterrestre em seu próprio planeta

 

Na ótica afrofuturista, a população negra contemporânea pode ser considerada sobrevivente de um processo de “abdução”. Neste sentido, “podemos dizer que as populações negras em diáspora pós-escravidão são as descendentes diretas de ‘alienígenas’ sequestrados, levados de uma cultura para outra (da África para a Europa e sobretudo para a América pelas rotas do Atlântico Negro)” (FREITAS; MESSIAS, 2018). Retirando a roupagem sci-fi dessa afirmação, há um contexto extremamente realista: povos afrodiaspóricos são o resultado de um processo violento de escravização, tendo sido retirados de sua terra natal e “alocados” em uma sociedade ocidental a qual não pertenciam. Como resultado sua cultura, linguagem, história e ancestralidade foram apagadas.

 

A abolição da escravidão não trouxe conforto àqueles que tiveram suas correntes retiradas. O que ocorreu foi tão somente uma reorganização da estrutura de subjugação, na qual o negro deixa de ser escravo para ser indivíduo racializado. A dinâmica de e violência foi transferida da mão dos senhores de engenho para o Estado. Desta forma:

"dado o contínuo acúmulo de morte negra nas mãos da polícia —apesar da maior visibilidade nos últimos anos— torna-se evidente que uma pessoa negra na rua hoje enfrenta uma vulnerabilidade aberta à violência, assim como o escravo o fazia nas plantações’. Essa visibilidade dos últimos anos, com a cobertura midiática e das redes sociais, demonstrou que na organização social atual “quando se é negro, não é preciso fazer nada para ser alvo, pois a própria negritude é criminalizada" (Freitas; Messias apud Racked & Dispatched, 2017, p. 9).

 

Figura 3 - A diáspora intergalática.

Fonte: Miles Davies (1970)

 

Os afrodiaspóricos, já desprovidos de sua própria narrativa, foram incorporados como órgãos estranhos de uma nova sociedade, sendo cerceados em prisões, assassinados pelas forças do Estado e confinados em favelas (FREITAS; MESSIAS, 2018). A escritora jamaicana Nalo Hopkins afirma que as populações negras que sobreviveram à escravidão, ao colonialismo europeu e ao processo de globalização já vivenciam uma própria realidade distópica. Segundo a autora, “o que acontece é que nós pensamos em distopia e catástrofe como aquela coisa que acontece em outro lugar, ou que pode ser adiada, quando [na verdade] está acontecendo  diariamente em todo o mundo” (HOPKINSON, 2017, s.d.).

 

A esperança em uma utopia futura

 

Os movimentos, protestos, marchas de desobediência civil do século XX, e os movimentos Black Lives Matter contemporâneos têm um objetivo em comum: preservar a vida e proteger a existência da população negra. Em outras palavras, visam a garantir a existência digna desta população no futuro. Nessa perspectiva, o afrofuturismo surge como a personificação destas lutas. 

 

Portanto, o afrofuturismo surge como uma oportunidade, para os povos afrodiaspóricos, de reapropriar-se de suas narrativas e imaginários. É uma chance de serem autores de suas próprias histórias, tendo a certeza de serem capazes de projetar seus próprios futuros (mesmo que ainda utópicos) em uma sociedade distópica. 

Por fim, o resgate da ancestralidade e o fortalecimento do indivíduo negro enquanto parte da sociedade são instrumentos fundamentais para a construção do imaginário afrofuturista. Afinal, há quem diga que quem controla o passado, controla o futuro, e quem controla o presente, controla o passado [4]. De fato, para os afrofuturistas, o futuro é agora.

 

Referências

 

DERY, Mark. Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose” in Flame Wars: the discourse of cyberculture. Durham: Duke University Press. 1994.

 

ESHUN, Kodwo. Further Considerations on Afrofuturism. 2003. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/27225560>. Acesso em 15 ago 2020.

 

FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo - as distopias do presente. Revista de la Associación de Estudios de Cine y Audiovisual. N º 17. Disponível em: <http://www.asaeca.org/imagofagia/index.php/imagofagia/article/view/1535>. Acesso em 15 ago 2020.

 

GILROY, Paulo. O Atlântico Negro:. Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM — Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2002, 427p.

 

HOPKINSON, Nalo (2017). Waving at Trains - An interview with Nalo Hopkinson. in Boston Review. 2017. Disponível em: <http://bostonreview.net/podcast/nalo-hopkinson-wavingtrains.> Acesso em 15 ago 2020.

 

MATTOS, Hebe Maria. Estudos afro asiáticos.  Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2002000200008#:~:text=O%20primeiro%20deles%20%C3%A9%20a,heran%C3%A7a%20racializada%20espalhada%20pelo%20Atl%C3%A2ntico.>. Acesso em 15 ago 2020.

 

KABRAL, Fabio. AFROFUTURISMO: Ensaios sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo. Disponível em: <https://fabiokabral.wordpress.com/2018/07/12/afrofuturismo-ensaios-sobre-narrativas-definicoes-mitologia-e-heroismo/>. Acesso em 15 ago 2020.

 

RACKED & DISPATCHED. Afro-pessimism: an introduction. Minneapolis. 2017.

 

SILVA,  Roger; SANTOS, Marinês; AMSTEL, Frederick. “QUANDO O NEGRO SE MOVIMENTA, TODA A POSSIBILIDADE DE FUTURO COM ELE SE MOVE”: AFROFUTURISMO E PRÁTICAS ESTÉTICAS DE RESISTÊNCIA”. Revista Albuquerque, vol. 11, n. 21, jan-jun de 2019. Disponível em: <https://periodicos.ufms.br/index.php/AlbRHis/article/download/9589/7147/>. Acesso em 15 jun 2020.

 

WOMACK, Ytasha. Afrofuturism. The World of Black sci fi and Fantasy Culture. 2013. 

 

YASZEK, Lisa. "Race in Science Fiction: The Case of Afrofuturism" in A Virtual Introduction to Science Fiction. Ed. Lars Schmeink. Web. 2013.

 

[1] Previsão de algo ainda não conhecido ou acontecido; antevisão, antecipação.

 

[2] A ficção especulativa é aquela que se propõe a especular sobre o futuro e o passado.

 

[3] As palavras utopia e distopia têm muita relevância no universo afrofuturista. O movimento busca ressignificar o presente através do resgate do passado. Para o negro, resgatar este passado é conhecer sua origem para empoderar-se no tempo presente. E, a partir disso projetar um futuro utópico (idealizado positivamente) em meio à distopia em que existe (uma realidade de opressão).

 

[4] Frase retirada da obra Nineteen Eighty-Four, de George Orwell.