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ANÁLISE DE CONJUNTURA
António Guterres, Secretário Geral da ONU

por Ana Luísa Vitali

Os 75 anos das Nações Unidas

 

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada em 24 de outubro de 1945, cerca de um mês após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de promover a cooperação internacional e a paz, para que conflitos mundiais não ocorressem novamente. Em 2020, a ONU completa 75 anos de existência. Considerando seu objetivo inicial, pode-se dizer que esta obteve sucesso, já que não houve conflitos entre países na magnitude dos iniciados em 1939 (THE ECONOMIST, 2020). Contudo, guerras civis se tornaram extremamente comuns e cada vez mais complexas, e as Nações Unidas falham em impedi-las ou controlar seus desastrosos resultados.

 

O número de pessoas deslocadas forçadamente por conta de conflitos quase dobrou em uma década: de 41.3 milhões em 2010 para 79.5 milhões em 2020 (SKRETTEBERG, 2020). Este é apenas um de muitos dados que podem comprovar a ineficiência da ONU na sua atuação em situações de guerra. Durante os três quartos de século que a ONU tem atuado, vários eventos transformaram a ordem mundial. O fim da União Soviética e da Guerra Fria findaram a ordem bipolar, a onda de descolonização na África e Ásia trouxe novos Estados como atores do sistema internacional; ambas mudanças podendo ameaçar fortemente a relevância da atuação das Nações Unidas, porém, esta se mostrou resiliente. Contudo, apesar da capacidade de gestão institucional em meio à grandes mudanças, a pandemia do novo Coronavírus (SARS-Cov-2) é a mais nova — e talvez a mais desafiadora — adversidade da Organização. 

 

A tentativa de um cessar-fogo Global durante a pandemia do novo Coronavírus

 

Em meio à disseminação rápida do Coronavírus, o Secretário-Geral da ONU, Antonio Guterres, em 23 de março, decidiu emitir uma declaração pedindo um cessar-fogo global, com vistas a combater o coronavírus, a "verdadeira batalha de nossas vidas" [1] (UN NEWS, 2020, tradução nossa). O pedido é, de fato, muito importante, pois áreas de conflito e campos de refugiados foram apontados como um dos locais mais propensos para contaminação da Covid-19 (WILSON, 2020).

 

Surpreendentemente, ainda no início de abril, grupos em conflito de 11 países (Camarões, República Centro Africana, Colômbia, Líbia, Myanmar, Filipinas, Sudão do Sul, Sudão, Síria, Ucrânia e Iêmen) afirmaram ter conhecimento do pedido. Contudo, estes comprovaram que reconhecer a crise não é o mesmo que agir efetivamente a seu respeito.

 

A figura abaixo mostra países em que ocorreram 50 ou mais combates violentos organizados desde o início da pandemia. Destes 43 listados, apenas 10 reconheceram o chamado de cessar-fogo, porém, não diminuíram o conflito. Os outros países não só não responderam ao Secretário-Geral como aumentaram os seus índices de hostilidade, como Brasil e Moçambique (MILLER, 2020). 

 

Figura 1 - Respostas ao pedido de cessar-fogo global

Fonte: Armed Conflict Location & Event Data Project (2020)

 

A falha em atender o pedido apresenta diversas causas. Uma delas é que, por vezes, este foi reconhecido por apenas uma parte do conflito, de modo que unilateralmente não é possível chegar em um acordo. Além disso, vários peacekeepers e mediadores estão em lockdown ou distanciamento social, sem poder agir efetivamente nestas discussões. Outra questão é que o Coronavírus ainda não atingiu as zonas conflituosas — pelo menos não em número de casos efetivamente confirmados — assim, os grupos beligerantes ainda não reconhecem os perigos de uma alta disseminação da doença e continuam suas condutas violentas (GOWAN, 2020).

 

Contudo, uma das falhas mais relevantes foi de responsabilidade da própria ONU. Isto porque o Conselho de Segurança, reconhecido como o órgão com a maior responsabilidade pela manutenção da paz e segurança internacional, falhou em reconhecer formalmente o pedido de Guterres (JARVIS, 2020), visto que as tensões políticas crescentes entre os Estados Unidos e a China estão impedindo que ambos concordem em uma resolução. Enquanto os diplomatas estadunidenses não aprovam que seja feita referência à Organização Mundial da Saúde, os chineses insistem na necessidade de mencioná-la, e, desse modo, todos os projetos de resolução apresentados foram vetados (GOWAN, PRADHAN, 2020).  

 

Portanto, um órgão criado com o objetivo final de coordenar a manutenção da paz falha em concordar com um pedido de cessar-fogo, levantando desconfiança quanto a sua capacidade de agir frente à resoluções mais complexas. Em adição ao fato de que, por anos, os próprios membros permanentes diminuem a autoridade e importância do CSNU, utilizando-o como um mero instrumento de poder quando lhes convém, a exemplo da invasão do Iraque pelos Estados Unidos e Reino Unido em 2003 e as disputas geopolíticas no Mar do Sul da China (THE ECONOMIST, 2020).

 

O futuro da atuação e relevância da ONU em conflitos

 

A falha do pedido de cessar-fogo é somente um dos muitos momentos em que a ONU e o Conselho de Segurança falharam em atuar de maneira conjunta e efetiva. Assim, considerando o aniversário da Organização e as numerosas transformações no sistema internacional desde 1945, a única saída para o futuro parece depender de uma grande reforma nas instâncias das Nações Unidas. 

 

O CSNU deve ser o primeiro dos órgãos a ser revisitado. A necessidade de mudança fica explícita ao se observar que 50% das discussões do Conselho, 60% dos seus documentos e 70% de suas resoluções são sobre a agenda de paz e segurança no continente africano (CARVALHO, FORTI, 2020), porém nenhum país da África possui assento permanente, que concede o poder de veto. Além disso, outros atores relevantes de outras regiões vêm reivindicando há anos uma reforma, a exemplo do G4, que contempla o Brasil, Alemanha, Japão e Índia (ZIEMATH, 2016). 

 

Portanto, o futuro potencial de atuação da ONU, caso o órgão não seja reformado, pode diminuir significativamente, dando espaço para respostas regionais organizadas fora do âmbito da Organização. Os Estados Unidos se consolidam como o maior exemplo de distanciamento de organismos internacionais hodiernamente e a crescente participação de novos atores, como a sociedade civil, aliada à implementação de estratégias baixo-cima, pode se tornar mais essencial do que as Nações Unidas nos próximos 25 anos. 

 

[1] The true fight of our lives

 

Referências

 

CARVALHO, G; FORTI, D. Africa can become more influential in the UN Security Council. Institute for Security Studies, 12 de março de 2020. Disponível em: https://issafrica.org/iss-today/africa-can-become-more-influential-in-the-un-security-council. Acesso em: 12 jul. 2020. 

 

COVID-19: UN chief calls for global ceasefire to focus on ‘the true fight of our lives’. UN NEWS, 23 de março de 2020. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2020/03/1059972. Acesso em: 12 jul. 2020. 

 

GOWAN, Richard. What’s Happened to the UN Secretary-General’s COVID-19 Ceasefire Call? International Crisis Group, 16 de junho de 2020. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/global/whats-happened-un-secretary-generals-covid-19-ceasefire-call. Acesso em: 12 jul. 2020. 

 

GOWAN, R; PRADHAN, A. Is All Hope Lost for a Global Ceasefire Resolution at the U.N? World Politics Review, 14 de maio e 2020. Disponível em: https://www.worldpoliticsreview.com/articles/28762/is-all-hope-lost-for-a-global-cease-fire-resolution-at-the-u-n. Acesso em: 12 jul. 2020.

 

JARVIS, Samuel. The Responsibility to Protect in 2020: Thinking Beyond the UN Security Council. E-International Relations, 19 de junho de 2020. Disponível em: https://www.e-ir.info/2020/06/19/the-responsibility-to-protect-in-2020-thinking-beyond-the-un-security-council/. Acesso em: 12 jul. 2020. 

 

MILLER, Adam. Call Unanswered: A Review of Responses to the UN Appeal for a Global Ceasefire. Armed Conflict Location & Event Data Project, 13 de março de 2020. Disponível em: https://acleddata.com/2020/05/13/call-unanswered-un-appeal/. Acesso em: 12 jul. 2020. 

 

SKRETTEBERG, Richard.  79.5 million people displaced in the age of Covid-19. Norwegian Refugee Council, 2020. Disponível em: https://www.nrc.no/shorthand/fr/79.5-million-people-displaced-in-the-age-of-covid-19/index.html. Acesso em: 12 jul. 2020. 

 

THE ECONOMIST. Special report: The new world disorder, 20 de junho de 2020. 

 

WILSON, Audrey. The Coronavirus Threatens Some More Than Others. Foreign Policy, 14 de março de 2020.  Disponível em: https://foreignpolicy.com/2020/04/14/coronavirus-pandemic-humanitarian-crisis-world-most-vulnerable-refugees-migrant-workers-global-poor/. Acesso em: 12 jul. 2020.

 

ZIEMATH, Gustavo. O Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas (1945-2011). Brasília: FUNAG, 2016.